Tio Gaudêncio
− Vaaaannnndããããããooooooooo!?
Foi o grito ouvido de dentro da saleta, ainda meio escura, o dia ainda nem amanhecera completamente. Os móveis estremeceram, as janelas racharam, reboco tremeu.
A chuva caía com a vontade de uma tromba d’água, parecia mais um jato de bombeiro apagando um incêndio do que uma chuva. Ainda bem que o lixo estava todo agasalhado em sacos plásticos, separados para reaproveitar: lixo orgânico, plástico, papel; tudo em ordem. A rua limpinha, sem igual. A cidade era toda organizada, o bairro incomparável a qualquer outro: limpo.
− Se é no Brasil? Onde acha que seria? Na Suécia? Lá não há organização e limpeza parecida. Seria até uma covardia a comparação. − Em Cidade Limpa, isso mesmo Cidade Limpa, esse é o nome, tudo é perfeito: iluminação, os postos de saúde, as escolas, as calçadas, praças, estádio, pontos de ônibus, tudo é limpo. O estranho de Cidade Limpa é a ausência de um hospital. Não que não tenha condições, é a saúde da população que é perfeita, claro. Porque a educação funciona, a solidariedade existe, o respeito é praticado e a amizade é cultivada.
O grito era de alegria, pois a chuva não encontrou obstáculos e escoou facilmente, sem deixar ninguém preocupado com alagamentos ou outras destruições comuns, vistas na TV, como as do Rio de Janeiro, Porto Velho, etc.
−Vandão, como vocês conseguiram deixar esta cidade perfeita?
−Ah!, Eh!, Bem, vou direto ao ponto: meu tio chegou aqui, ele veio do Paraná, animado com a terra, ele dizia que era muito boa pra quase todo o tipo de lavoura. Como era muito organizado, resolveu propor pro prefeito, um sujeito safado, rapaz, uma maneira de manter a cidade limpa e bem bonita. O prefeito logo pensou como poderia arrancar um dinheirinho disso. O que ele não percebeu, seu moço, vê bem, foi que meu tio era honesto e muito querido.
Encurtando a história, ele chamou meu tio para o gabinete dele e veio com aquela conversa mole de que não pode por isso, por aquilo, mas que se meu tio conseguisse um jeito de mostrar, ensinar às pessoas o caminho para respeitar a natureza ele arrumaria um emprego para meu tio.
O tio Gaudêncio desconfiou da mão. Fingiu que aceitaria só pra ver no que ia dar. Na casa dele, falou com a família. Nesse dia eu estava lá, todo mundo fazia pamonha, era uma beleza, uma gostosura. Todo mundo ficou meio preocupado, mas concordou que o tio levasse o plano adiante.
O que eu sei do fim da história foi que ele saiu de casa em casa falando da possibilidade de se proteger e todos se protegerem tanto da natureza quanto daquele prefeito.
Não deu outra. O prefeito pediu os documentos do tio, ele meio bobão, acreditava nas pessoas entregou. Algum tempo depois um rapaz se dizia ser da justiça, era pro tio procurar o fórum que tinha um negócio feio pra ele.
Meu Deus, foi a maior burrada do prefeito. O tio foi, lá um cara, não sei quem, nem ele sabe dizer até hoje, disse que a prefeitura pagou não sei quantos anos de salário pra ele e ele nunca prestou serviço pro povo.
O veio era daqueles que quando cutucam ele, não vê mais nada. Pediu na hora pra provar. O moço trouxe uma papelama danada pra ele ver. Tinha tudo, seu moço, até assinatura dele recebendo o salário. Aí que veio o truque do veio: ele não sabia escrever nem o nome dele. Inclusive nos documentos estava escrito “NÃO ALFABETIZADO”.
O prefeito começou mal. A cidade estava um brinco. Tinha lascado com a vida do tio. Tudo corria a favor dele. Enquanto o tal do Ministério Público investigava, tio Gaudêncio resolveu estudar. Lembra que ele saiu de casa em casa? Pois é, nessa ele encontrou um professor que reclamava da falta de estrutura da escola, do salário, pra lhe ensinar. Em pouco tempo, o tio lia, relia, escrevia, reescrevia, fazia contas, calculava melhor que as maquininhas, como é que se chama? – CALCULADORA! – foi o grito do vizinho que ouvia minha conversa. Foi pro Supletivo, tirou diploma da quarta série, candidatou a prefeito, deu uma lavada naquele safado.
O resto, bem. Seu moço dá uma olhada na cidade. Usou certinho o dinheiro do povo. Não usou pra ele, usou para o povo.
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